PARA PRINCESAS VISÍVEIS
Uma musiquinha
embalava a soneca da tarde do Domingo chuvoso. Abri os olhos do cochilo pra
encarar o que acordou minha menina de anos atrás e as cenas que talvez não
sumam com o pó da fadinha mais habilidosa de todos os contos. Assisti
atentamente o comercial da
linha Gotas de Brilho, produto Johnson’s, com campanha lançada
recentemente e um slogan que afirma “sua princesa com cabelos de princesa” para as
mamães interessadas.
A Élida “grande” sentiu um aperto
igual ao dos velhos tempos. Pensei, naquela fração de segundos, que a publicidade ainda não me entende como
princesa também, não vê meninas que são como eu sou e ainda nos diz sutilmente
que nosso cabelo não pode entrar na brincadeira.
Acabou o comercial, coloquei a
mão no cabelo bagunçado pela preguiça do feriado com alguma aflição. Constatei:
tudo bem comigo, não há defeito aqui, sou rainha coroada. Levantei com a pressa
de quem precisa acordar uns e outros que insistem em imitar a Branca de Neve e
se fingem de mortos diante da realidade.
por Élida Aquino no Meninas BlackPower
Permitam-me começar
com uma história. Vocês já ouviram outras assim, mas vale a repetição. Era uma
vez uma menina da 6ª série. Ela era dessas que ficam lá na frente. Mais alta
que a média, com o cabelo mais cheio que todas. Assistia à aula naquele dia
como uma equilibrista e pedia do fundo do coração que o penteado que a mãe
havia feito, preso com um acessório frágil demais pro cabelão que estava ali,
não soltasse de jeito algum.
As preces não foram atendidas e sem que ela esperasse… boom!
Não havia mais penteado e nem alguém que não estivesse rindo.
Ela deu um jeito de prender bem preso, mas não conseguiu escapar das
observadoras que queriam “ajudar com o problema”. ― Seu cabelo é tão cheio!
Acho que você passa pouco creme. Passa mais creme nele! ― uma delas afirmou. ―
Amanhã vou passar bastante creme e ele nem vai ficar cheio. Vocês vão ver! ―
ela garantiu.
E foi assim. Muito creme e um pompom reforçado num dia, relaxantes que
queimavam a cabeça tempos depois. Ela lembra ainda da sensação da primeira
escova. Cabelo tão longo e liso quanto o da Rapunzel. Toda feliz por ver que as
meninas da turma acharam bonito e queriam pentear com os dedos, sem contar o
carinha mais badalado da turma que, enfim, naquele dia liso e glorioso, sorriu
pra ela. Isso tudo ditou o futuro que durou anos. Entre kits de relaxante,
tardes escovadas, horas na prancha.
Reformando,
deformando, queimando, quebrando. Até que não sobrou mais o que era e ela
precisou se redescobrir, entender que não era normal querer ser outra, que
precisava voltar antes de passar pro outro nível do jogo. Ela sou eu.
Não quero que as meninas e meninos de hoje vivam a mesma coisa e
pergunto aqui até onde vai a insanidade da publicidade brasileira. Até quando,
mesmo sabendo que a beleza é diversa e que toda beleza deve se ver nas
prateleiras quando resolver consumir, vão se esforçar pra nos manter fora, pra
nos tornar invisíveis?
Meu coração esperou ver crianças como minhas sobrinhas ou sobrinho (que
consomem produtos da marca), minha vizinha, minhas futuras filhas ou filhos,
mas não vieram. Não
podem ser princesas ou príncipes? Ainda?! De quem é o universo lúdico que estão
exaltando? O que me ofereceram foi um clubinho de crianças branquinhas,
lisinhas, com o olho clarinho, brincando no parquinho acompanhadas das mamães
(igualmente branquinhas, lisinhas, com aquela carinha conhecida, por sinal).
A mesma fôrma da princesa e do príncipe encantado que sempre colocaram
como exemplo de perfeição. Onde estão as minhas amigas que são mães? Onde estão
as crianças que eu abraço, beijo e brinco? Elas usam shampoos, colônia,
adoram bagunça na banheira, um penteado novo, roupas coloridas e são fofas
também. Elas estão por aí e precisam estar dentro da telinha do Brasil que não
é uniforme, que possui a maior população negra fora da África e abriga gente
com tantas outras características não-brancas.
Onde nascem bebês de todos os jeitinhos que vocês possam imaginar. Não
precisamos e não queremos tolerar mais do estereótipo já vendido.
DEDICO ÀS PRINCESAS E PRÍNCIPES QUE AINDA NÃO ESTÃO SE VENDO, ESPERANDO QUE SE VEJAM AQUI, QUE SE VEJAM EM MIM. COM AMOR.
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