Diploma ecoa na aldeia: Medicina da UFRGS forma a primeira cotista
indígena
Por: Aline Custódio
20/06/2015 - 10h03min
Foto: Ricardo Duarte / Agencia RBS
Quando o nome de
Lucíola Maria Inácio Belfort, 38 anos, foi anunciado nos microfones do Salão de
Atos da Universidade Federal do Rio Grande do Sul (UFRGS) para receber o
diploma de médica, na noite de sexta-feira, uma nova parte da história da
principal universidade federal do Estado estava sendo escrita.
Lucíola é a primeira indígena
a se formar em Medicina na instituição e está entre os cotistas que ingressaram
em 2008, os precursores no programa de ações afirmativas – nome dado às
políticas em benefício a grupos discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica
no passado ou no presente.
Caingangue, Lucíola, ou
Nivãn, nome pelo qual é chamada entre os de sua etnia, faz parte de uma parcela
de estudantes universitários que, a partir da reserva de vagas para egressos de
escolas públicas e autodeclarados pretos, pardos e indígenas, chegou ao ensino
superior gratuito. Hoje, eles são cerca de 9 mil entre os 30,7 mil estudantes
dos 93 cursos da UFRGS.
Até terça-feira, o Diário
Gaúcho apresentará as mudanças que as ações afirmativas já estão causando nas
diferentes esferas que circundam os cotistas: da sala de aula à vida.
Lucíola na Reserva da Serrinha, no Norte do Estado
Foto: Tadeu Vilani
Às 19h14min desta
sexta-feira, Lucíola recebeu seu diploma de médica. Usando brincos produzidos
pela aldeia caingangue, ela vibrou muito enquanto recebia os aplausos da
família. Uma noite para celebrar uma conquista tão batalhada.
Três
semanas antes da formatura, o Diário Gaúcho acompanhou a ida de Lucíola à
aldeia de Alto Alegre, em Ronda Alta, a 355km da Capital, para entregar os
convites da formatura. Suas mãos tremeram ao ficar frente a frente com a mãe,
Andila Inácio, 60 anos. O convite reafirmava a promessa feita a Andila quando
ingressou no curso de Medicina, há sete anos.
— Tá
aqui, a vitória é nossa — disse Lucíola.
Integrante
da primeira turma de dez indígenas selecionados pela Ufrgs por meio de reserva
especial de vagas, Lucíola havia se formado em Enfermagem, em 2001 – curso
feito com bolsa de estudos numa universidade particular da região Norte do
Estado. Durante sete anos, atuou como enfermeira em aldeias indígenas no Tocantins
e no Rio Grande do Sul, sempre embalando o sonho de um dia cursar Medicina.
— Na
época, eu trabalhava numa aldeia em Viamão quando minha mãe me avisou que as
portas da Ufrgs seriam abertas aos indígenas. Era apenas uma vaga para 20
candidatos, e eu passei em primeiro lugar — recorda Lucíola.
Segunda
filha mais velha de cinco irmãs, a futura médica integra uma família que pode
se considerar diferenciada entre os caingangues: todos têm nível universitário.
Espalhados
Brasil afora
A mãe,
Andila Inácio, é professora aposentada e faz parte da primeira turma de
indígenas bilíngues do Brasil. O pai, José Maria Baima Belfort, que vive em São
Luis (MA), é funcionário aposentado da Funai. Entre as irmãs, Lucia Fernanda,
36 anos, é advogada e a primeira indígena com o título de mestra do Brasil.
Suzana, 40 anos, é advogada e mestra em Direito, Sônia, 34 anos, é jornalista,
e Luciana, 35 anos, é escritora. Lucia Fernanda mora na aldeia Alto Alegre.
Sônia mora em São Félix do Araguaia (MT), Suzana, em Chapecó (SC), e Luciana,
em Barra Velha (BA).
— Quando
as minhas filhas se formaram em Direito, já foi uma vitória. A Lucíola tem uma
responsabilidade muito grande, porque temos muita precariedade na área da
saúde — justifica Andila.
Lucíola e mãe na Reserva da Serrinha, no Norte do Estado
Foto: Tadeu Vilani
Resistência
dos colegas
No início do curso, em 2008, por ser a única estudante em cota
racial, já que naquele ano não entraram cotistas autodeclarados negros, Lucíola
foi o alvo das manifestações dos colegas de curso. Viu seu nome em protestos
nas redes sociais.
— Me enviavam mensagens dizendo que eu não deveria estar lá, que havia tirado a
vaga de outra pessoa. Teve um ato na universidade para os colegas me entregarem
o jaleco, e os professores e alguns veteranos se retiraram em protesto —
recorda.
Quando a UFRGS criou o acesso aos indígenas, as vagas destinadas a eles
não faziam parte das já existentes. E isso ocorre até hoje. As dez vagas anuais
destinadas aos indígenas são escolhidas por uma comissão formada por caciques
das aldeias gaúchas e representantes da universidade.
— Se eu tivesse 19 anos, teria desistido ali mesmo. Mas resisti até o fim, como
minha mãe me ensinou — lembra.
"É uma porta que está se abrindo, e todas as
propostas que me possibilitarem crescer, eu vou aceitar!"
Lucíola Maria Inácio
Belfort
"Uma
vitória que não é só dela, não é só da minha família, mas de todo um povo."
Andila Inácio
Lucíola, o marido e o filho Reserva da Serrinha, no Norte do Estado
Foto: Tadeu Vilani
Lucíola teria se
formado em 2012, junto com a amiga caingangue e enfermeira Denize Marcolino, 24
anos, se tivesse concluído o curso no tempo mínimo exigido. Porém, prorrogou a
conclusão por quase dois anos quando se descobriu grávida, no segundo ano de
Medicina. Ela se apaixonou pelo então estudante de Odontologia Márcio Secco,
hoje com 38 anos e de origem germânica, e com ele teve Kafâg, cinco anos, cujo
nome é uma homenagem à araucária, árvore que representa o povo caingangue.
Para
agilizar os estudos, Lucíola deixou o filho na aldeia, por um ano. Foi o
segundo período mais difícil ao longo da universidade. Enquanto esteve entre os
familiares da mãe, o menino era cuidado de perto pela amiga Miriam Joaquim,
30 anos,
que ensinou palavras em caingangue para Kafâg.
— Uma
índia jamais abandona o seu filho com alguém, nem em creche. Mas foi
necessário, porque eu precisava estudar 24 horas. Para Kafâg, foi importante
conhecer a nossa cultura. Hoje, ele se sente mais feliz na aldeia do que na
cidade — conta Lucíola, enquanto observa o menino loiro correndo entre os
primos na aldeia de Alto Alegre.
Apaixonado
pela cultura caingangue, Márcio trabalhou durante seis meses no posto de saúde
de Alto Alegre. Hoje, os três moram no Bairro São Geraldo, em Porto Alegre. Mas
é o marido quem mais apoia Lucíola no retorno à aldeia, depois que ela receber
o diploma.
"Nós queríamos que os nossos filhos
estudassem, fizessem ensino superior. É um pleito de, mais ou menos, 30 anos."
Cacique Antônio Ming
"A política de ações afirmativas não é para
reduzir o racismo, mas para diminuir as desigualdades racial e social ainda
existentes no Brasil."
Edilson Nabarro,
vice-coordenador da Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações
Afirmativas da UFRGS
No último dia como
estudante, Lucíola despediu-se da UBS Santa Cecília, na Capital, onde fez o
estágio final do curso, atendendo ao pequeno Matheus Busnelo Keidann, cinco
anos, filho da zeladora Marta Eliane Burnelo Keidann, 45 anos. Descontraída,
Lucíola tornou a consulta mais leve ao brincar com Matheus.
—Ela foi
muito atenciosa e o examinou por completo. Dificilmente, o médico faz isso. Ela
vai ser uma grande profissional — afirma Marta, desejando boa sorte à
futura médica.
E o futuro?
No retorno à aldeia, Lucíola fez questão de entregar um
convite ao cacique Antônio Ming. E dele veio a proposta para ela trabalhar no
posto de saúde de Alto Alegre, junto com o marido:
— É a primeira caingangue se formando em Medicina no Rio Grande do Sul.
Dou meus parabéns à Lucíola, pois venceu.
Antes do regresso definitivo às origens, porém, Lucíola pretende atuar como
clínica e fazer uma especialização em Medicina da Família. Mas é uma questão de
tempo:
— Penso em voltar para as aldeias, independentemente de qual seja. Não vou
salvar o mundo, não vou salvar todos todos os índios, mas é uma porta que se
abre.
Os indígenas e as cotas
* Desde 2008, 70 vagas
foram oferecidas aos indígenas. Dessas, 65 foram ocupadas – nove por estudantes
da etnia guarani e 54, da etnia caingangue.
* 45 estudantes indígenas
estão regularmente matriculados.
* Três alunos indígenas
foram diplomados, em Direito e Enfermagem.
* 15 alunos solicitaram
o desligamento do curso e três abandonaram a universidade.
Fonte: Relatório anual
2013/2014 da Coordenadoria de Acompanhamento do Programa de Ações Afirmativas

Lucíola, no último dia de aula, atendendo paciente
Foto: Tadeu Vilani
ENTENDA AS AÇÕES
AFIRMATIVAS
* Das vagas oferecidas
na Ufrgs, 40% são reservadas às ações afirmativas (políticas em benefício a
grupos discriminados e vitimados pela exclusão socioeconômica no passado ou no
presente).
* São vagas destinadas a
alunos de escolas públicas. É levado em consideração se o aluno declara-se
preto, pardo ou indígena e a sua condição financeira.
* Todo candidato
inscrito no vestibular concorre por acesso universal. O candidato que desejar
concorrer também às vagas destinadas ao sistema de ingresso por reserva de
vagas assinala a opção no ato da inscrição do vestibular.
* Se ele não atingir a nota
para conquistar a vaga via universal, aí, caso inscrito, começa a ter os
critérios avaliados para ingressar como cotista.
http://zh.clicrbs.com.br/rs/noticias/noticia/2015/06/diploma-ecoa-na-aldeia-medicina-da-ufrgs-forma-a-primeira-cotista-indigena-4785525.html
Acesso: 23/07/2015, 8h35min