Certo dia, eu saía
para trabalhar quando a vizinha me chamou:
— Espere, Ieda. O Dr. Fulano vai para o Campo Grande e pode lhe dar uma carona. O Dr. Fulano era um senhor grisalho, muito cheio de mesuras e gentilezas. — Professora, estou encantado em conhecê-la. Soube que a senhora sabe tudo sobre a África. — Ninguém sabe tudo sobre nenhum assunto — retruquei. Mas ele não deu nenhuma importância à minha interrupção porque, de fato, aquilo era um mero preâmbulo à cretinice que veio logo em seguida. — Já que a senhora sabe tudo sobre a África, não acha que, sendo o cérebro do negro comprovadamente menor do que o do branco, ele é, naturalmente, menos inteligente? Confesso que me senti tão irritada quanto vocês estão se sentindo agora, ao ler esta idiotice. Mas parece que o velho Oxalá jogou o seu alá sobre mim e eu permaneci bastante calma, respondendo com outra pergunta: — O senhor já ouviu falar em Léopold Senghor? — Não, nunca ouvi. Então eu comecei a falar sobre Léopold Sédar Senghor, africano, filho de pai e mãe africanos (porque se for mestiço eles dizem que a inteligência vem do lado branco). Contei como Senghor, muito jovem, lecionou francês, na França, aos franceses. Que ele era membro da Academia Francesa de Letras, vencendo todos os escritores franceses que competiram com ele. Que ele era traduzido para o alemão, o japonês, o inglês e até para o português. Que ele era Doutor em Honoris Causa em mais de 20 Universidades do mundo inteiro, que havia ganho mais de 15 prêmios internacionais de poesia... E, como se tudo isso não bastasse, era um grande estadista, respeitado no mundo inteiro. Chegando ao nosso destino, mais ou menos uns dez minutos depois, o Dr. Fulano admitiu: — A senhora me convenceu. Ao que respondi, com ironia: — E com um crioulo só.
Dois Poemas de
Senghor... com gostinho de quero mais.
MULHER NEGRA
Tradução de Guilherme de Souza Castro* Mulher nua, mulher negra Vestida de tua cor que é vida, de tua forma que é beleza! Cresci à tua sombra; a doçura de tuas mãos acariciou os meus olhos. E eis que, no auge do verão, em pleno Sul, eu te descubro, Terra prometida, do cimo de alto desfiladeiro calcinado, E tua beleza me atinge em pleno coração, como o golpe certeiro de uma águia. Fêmea nua, fêmea escura. Fruto sazonado de carne vigorosa, êxtase escuro de vinho negro, boca que faz lírica a minha boca savana de horizontes puros, savana que freme com as carícias ardentes do vento Leste. Tam-tam escultural, tenso tambor que murmura sob os dedos do vencedor Tua voz grave de contralto é o canto espiritual da Amada. Fêmea nua, fêmea negra, Lençol de óleo que nenhum sopro enruga, óleo calmo nos flancos do atleta, nos flancos dos príncipes do Mali. Gazela de adornos celestes, as pérolas são estrelas sobre a noite da tua pele. Delícia do espírito, as cintilações de ouro sobre tua pele que ondula à sombra de tua cabeleira. Dissipa-se minha angústia, ante o sol dos teus olhos. Mulher nua, fêmea negra, Eu te canto a beleza passageira para fixá-la eternamente, antes que o zelo do destino te reduza a cinzas para alimentar as raízes da vida. Na escassa penumbra da tarde, sonho. Vêm me visitar as fadigas do dia, os defuntos do ano, as lembranças da década, como uma procissão dos mortos daquela aldeia perdida lá no horizonte. Este é o mesmo sol, impregnado de miragens o mesmo céu que presenças ocultas dissimulam o mesmo céu temido daqueles que tratam com os que se foram Eis que a mim vêm os meus mortos. Disponível em: http://www.quilombhoje.com.br/ensaio/ieda/senghor.htm |
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terça-feira, 19 de agosto de 2014
Poetas Negros
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